segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Os Índios (O POLIEDRO - Murilo Mendes - 1972)


Nunca tive ocasião de ver um índio, um índio brasileiro de carne e osso. Até agora só conheci alguns índios de papel e tinta, construídos por José de Alencar, Gonçalves Dias, Mário de Andrade e outros.
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Os índios, ao que parece, nômades natos; banhistas contumazes; mulherengos; irrevogavelmente distraídos. Como todos os povos que atingiram um alto nível de civilização, eles não usavam trabalhar. Já que não lhes apetecia comprar nem vender, qualquer trabalho resultava-lhes supérfluo, e os índios desprezavam o supérfluo; ao contrário de nós próprios que fabricando diariamente milhares de objetos, acabamos por desembocar na guerra, máquina de matar homens e de incinerar objetos, estupidamente louvada, além de outros, por F. T. Marinctti, acadêmico da Itália.

Os índios não precisavam de trabalhar: colhiam sem esforço ao pé da rede o peixe e a banana, o que deu pretexto a Evandro Pequeno, homem arguto, para fundar sua célebre teoria do bananismo, única via de saída para os problemas do nosso exagitado Brasil.
Nunca aceitei a teoria da existência de índios antropófagos: eles não eram nazistas. Perdão, Montaigne.

Os índios acreditavam a prestações em Deus, formado à imagem deles próprios, como de resto, em muitos casos, o Deus dos outros. Dormiam devagarinho: extremamente curiosos, punham-se a observar o sono do próximo, operação mágica que reserva ao homem encantos especiais.
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Minha amiga Rosinha Leão costuma dizer que nós brasileiros somos índios vestidos de ingleses, ou melhor, de americanos. Eu só conheço os índios de poesia e de fotografia. Outrora fui ao cinema para documentar-me sobre eles. O diabo é que os cineastas de hoje não se ocupam mais de índios, embora agrade a muitos trabalhar com fantasmas. E, como se sabe que o número de fantasmas progride cada dia, inclusive os fantasmas de índios, acabarei voltando ao cinema para vê-los.

(Murilo Mendes - Poliedro - 1972)